sábado, 21 de jun. de 2025
Blog da Cris Guarapuava

O mundo não é tão bão, Sebastião

A morte de Sebastião Salgado não marca apenas o fim de uma trajetória artística consagrada, mas a perda de um olhar incômodo para muitos

Sebastião Salgado (Foto: Instituto Terra)

A morte de Sebastião Salgado, anunciada nesta sexta (23), não marca apenas o fim de uma trajetória artística consagrada. Marca a perda de um olhar incômodo para aqueles que acham que estão acima de todos. Um olhar que atravessava fronteiras para expor, em preto e branco, o cinza da injustiça social, da desigualdade estrutural e da violência que sustenta o sistema global.

Economista de formação e fotógrafo por vocação, Salgado foi um cronista visual dos invisíveis. A câmera que carregava como extensão do próprio corpo, não servia ao entretenimento, servia à denúncia. Em um mundo onde a miséria é muitas vezes tratada como estatística, ele devolveu rosto, corpo e dignidade às vítimas do capitalismo predatório, dos conflitos étnicos, da exploração trabalhista e do abandono ambiental. Foi, portanto, mais do que um artista: foi um militante da imagem.

Trabalhos como ‘Êxodos e Trabalhadores’ deveriam ser leitura obrigatória para qualquer governante ou parlamentar que se proponha a discutir reforma agrária, migração, políticas públicas ou direitos humanos. Porque ali estão retratados, sem filtros, os custos humanos das escolhas políticas: a fome, o exílio, o trabalho análogo à escravidão, a destruição do meio ambiente.

HUMANISTA

Salgado era um humanista, mas não um ingênuo. O ativismo ecológico que exercia com o Instituto Terra, criado com a esposa Lélia, mostrou que regenerar uma floresta devastada é tão político quanto fotografá-la. O compromisso dele com o planeta era prático, e a crítica à devastação ambiental sempre veio acompanhada de ação.

Portanto, ele não era apenas um fotógrafo; assim, como nós jornalistas, era um contador de histórias que usava a luz e a sombra para revelar verdades muitas vezes ignoradas. As imagens em preto e branco capturaram a essência de trabalhadores exaustos, refugiados em fuga e paisagens ameaçadas. Trazendo sempre com uma estética que transcendia o mero registro factual.

Num tempo em que parte da elite política tenta descredibilizar a arte, a ciência e a educação, a morte de Salgado nos lembra que há formas de resistência que persistem. Ele incomodou porque nunca estetizou a pobreza: a transformou em denúncia. As imagens retratadas não pediam compaixão, exigiam responsabilidade.

O QUE ESTAMOS DISPOSTOS A VER?

Sebastião Salgado nos deixa em um momento em que o Brasil ainda decide que país quer ser. A pergunta que fica não é o que ele registrou, mas o que estamos dispostos a ver. E também transformar com o que ele nos mostrou. O silêncio da câmera nos deixa um testemunho poderoso da capacidade da arte de influenciar o pensamento político e social.

Em tempos de polarização e desinformação, as fotografias continuam a servir como lembretes visuais da importância da empatia, da justiça e da ação coletiva. O legado dele, portanto, nos desafia a olhar além das aparências e a confrontar as realidades que muitos preferem ignorar.

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Cristina Esteche

Jornalista

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