22/08/2023
Guarapuava

Ele era apenas um rapaz latinoamericano que nos fez ver que vivemos como nossos pais

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Cristina Esteche

Guarapuava – Ele era apenas um rapaz latinoamericano, sem dinheiro no banco e vindo do interior. O cantor e compositor Belchior nasceu em Sobral, no interior cearense e neste final de semana, sai de cena definitivamente, deixando um vácuo na boa música popular brasileira que marcou o final dos anos 70 e o começo da década de 80.

Belchior morreu nesse sábado (29), aos 70 anos de idade, numa cidade gaúcha. A causa da morte ainda não foi revelada. Embora tenha interrompida a trajetória artística em 2007, sem maiores explicações, atolados em dívidas e uma fuga, não apenas de lugares, mas de si mesmo, a sua música nunca deixou que Belchior desaparecesse da memória de milhares e milhares de fãs.

“Belchior foi o compositor que mais cantou o cotidiano do brasileiro, desde o mais humilde até os que estão no topo. Tudo o que a gente sente ele conseguiu traduzir, com letras e melodias fortes. Pra mim ele já tinha deixado este plano espiritual há muito tempo, desde que ele entrou nessa fuga, mas a sua obra. E isso é o que importa”, diz o percussionista, Orlando Silva.

Para Mariângela Esteche, falar de Belchior é falar de uma época de militância política. “Ele consegui traduzir em suas letras tudo o que não conseguíamos falar. Falar de Belchior também me remete a ‘John o tempo mexeu com a gente, sim’. O tempo passou mas a luta continua a mesma. Então falar de Belchior é  falar do tempo, de luta e de amor”.

Belchior marca uma época que levou artistas nordestinos para o eixo Rio- São Paulo nos anos 70, mas esse compositor nunca se desligou de suas raízes. Basta ouvir Mucuripe, que conta a cotidiano do pescador de Fortaleza, a sua capital, música que fez sucesso na voz do também cearense Fagner, companheiro de composição.

As músicas de Fagner são tantas, mas Alucinação mostra que ele nunca esteve interessado em tantas teorias. Mas amigo,  um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha,  blue jeans e motocicletas, pessoas cinzas normais, tudo continua igual. Garotas dentro da noite, revólver: cheira cachorro. Os humilhados do parque com os seus jornais. Carneiros, mesa, trabalho, meu corpo que cai do oitavo andar. E a solidão das pessoas dessas capitais. A violência da noite, o movimento do tráfego. Um rapaz delicado e alegre que canta e requebra, é demais. Cravos, espinhas no rosto, Rock, Hot Dog, ‘play it cool, Baby’. Doze jovens coloridos, dois policiais cumprindo o seu (maldito) duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida. Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia Amar e mudar as coisas me interessa mais”.

Nessa composição, Belchior fez uma espécie de inventário, movido viceralmente pela emoção, das perdas e ganhos da geração que tentou mudar o mundo na década de 1960. É possível  sentir uma amargura na constatação de que tudo continuava, ou melhor, como antes.

Assim como esse álbum, é impossível retratar aqui a obra legada por Belchior. Vale muito mais ouvi-la. Afinal, quem curte Belchior, quem já teve romances, perdas, ganhos e lutas embaladas por uma trilha sonora desse brasileiro que nasceu no Ceará, sabe muito bem do que estou falando. E foi assim, “com medo de avião que eu segurei pela primeira vez na tua mão”.

Mas Belchior, nos últimos anos preferiu a reclusão. Afinal é nos discos que conta “como eu vivi e tudo o que aconteceu comigo”. Porque para ele sempre foi melhor viver do que sonhar e já faz tempo, mas eu vi você na rua, cabelo ao vento, gente jovem reunida. E na parede da memória esta lembrança é o quadro que dói mais. E como Belchior sempre disse, a nossa dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”.

E foi vendo de longe, fora da cena, que tudo o que escreveu  e cantou lá nos idos de 70 nada continua mais atual.

O jovem latino-americano se foi, e com certeza, sem dinheiro no bolso, mas nas paralelas de outro plano espiritual, a presença de Belchior continuará intocável, em todos os lugares por onde passou, em todos o palcos onde cantou, em todas as épocas de pessoas que imortalizou. E como ele sempre disse:  No Corcovado quem abre os braços sou eu; Copacabana esta semana o mar sou eu”. Para sempre!

Cristina Esteche

Jornalista

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