22/08/2023
Geral Guarapuava

Por trás do drama de cada um, uma lição de solidariedade

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Cristina Esteche com fotos de Caroline Bastos, do Humanos de Guarapuava

Guarapuava – Cumplicidade, solidariedade, companheirismo. Esta foi a maior lição extraída do contato com parte dos moradores de rua, em Guarapuava. Era sexta feira, 09 de junho, uma das noites mais frias do ano. Os termômetros registravam 1ºC. Colocar as mãos para fora era ter a certeza de que o frio seria sentido, literalmente, na pele.

Agora imagine uma pessoa com blusa fina, rasgada, pés no chão e uma calça esfarrapada. Foi assim que encontramos o seu Vicente. Ele dorme embaixo de uma das marquises da Igreja Santa Terezinha. Um pedaço de papelão e um cobertor fininho lhe protegem do vento, da chuva, do frio que castiga. Ao lado, uma garrafinha com a cachaça, sua inseparável companheira. “Eu moro na rua há 30 anos. Já estou com mais de 60”, disse, enquanto recebia as roupas e as cobertas doadas por guarapuavanos e que estavam sendo entregues pela RSN e pela Juliana Cavalheiro e Caroline Bastos, do Humanos de Guarapuava.

Já agasalhado com meias, gorro, calça e jaqueta, e tendo nos braços mais dois cobertores, seu José deixou o rosto ser banhado pelas lágrimas. As mãos surradas pelo sofrimento se juntaram para agradecer o que havia recebido.

Ali, na Avenida Moacir Silvestri, esquina com a Saldanha Marinho, num antigo posto de gasolina, outros quatro homens foram encontrados. Um deles, José, já havia recebido agasalhos e contou que a matéria veiculada pela RSN lhe rendeu um colchão. “Leram a reportagem e trouxeram aqui”.

Num pedaço de chapa sobre um 'fogão' improvisado com tijolos, os quatro aguardavam meia dúzia de pinhões serem assados. Seria a primeira e única refeição do dia.

Lá estava Lucas, um jovem de 18 anos, que levou para a rua o seu irmão mais novo. “Olha aqui, você já morou numa casa com 12 pessoas onde só você trabalha e quando chega em casa ainda é escurraçado porque levou pouco dinheiro? Você fica ralando o dia todo enquanto os outros não fazem nada. Então é melhor viver na rua. Aqui todo mundo é parça [parceiro]. Olha aí, um ajuda o outro”.

O cheiro de cola exala forte. “Olha aí, pra aguentar a fome, o frio, e o sofrimento da vida é só assim, cheirando cola”, justifica. “Mas um dia eu saio dessa e ajudo o meu irmãozinho, aí”.

Indicadas para onde deveríamos ir para encontrar outros moradores de rua, seguimos até um posto de combustível na própria avenida. Descemos do carro e encontramos o Marquinhos. “Eu moro na rua”, disse, enquanto segurava uma garrafa de cachaça nas mãos. Ao saber que tínhamos roupas e cobertas nos convidou a ir até um espaço adiante onde encontramos a Sheila e o Mancha (foto acima). O casal vive junto há oito anos. “Ah! eu tenho um sonho de ter uma casa bem bonita pra cuidar”, respondeu Sheila à pergunta feita pela Juliana. “E eu quero ter uma casa pra por a minha nega dentro”, emenda Mancha. Enquanto o casal experimenta as peças de roupas doadas, num canto, Marquinhos arruma o pedaço de papelão que serve como colchão e acomoda o Pilantra, seu fiel amigo cão.

“Minha família mora na Vila Primavera, mas eu não gosto de ver a cara da minha madrasta”, começa a falar com um sotaque “portunhol”. Ele viveu muitos anos em Foz do Iguaçu, com o seu pai. Mas o que chama a atenção é que todas as pessoas com que conversamos são de Guarapuava.

Aos poucos, Marquinhos vai se soltando e recebe as peças que são escolhidas pelo casal a quem chama de compadres. “Eu queria mesmo era ser artista, cantar por aí. Já tive bar, hoje só tenho a liberdade da rua e gosto disso”.

A conversa com Marquinhos é interrompida por Sheila. A preocupação era saber quantos graus faria na madrugada. “Vai esfriar muito, mas vocês são abençoados e nos trouxeram agasalhos”.

De repente, para quebrar o silêncio que pairou sobre o local, Marquinhos começou a cantar. A canção falava de um amor perdido. Em seguida, pediu para declamar um poema. “E a única forma que tenho para agradecer”.

Cristina Esteche

Jornalista

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