O assunto do momento no debate cada vez mais confuso na política brasileira é o projeto espertalhão de Renan Calheiros que quer definir os crimes de abuso de autoridade. O texto já é um nítido abuso, uma vez que faz uso descarado do cargo para disputar força com o Judiciário – recado ao STF e represália aos procuradores que estão no seu encalço. Renan, no entanto, diz que seu projeto “não é contra ninguém, é contra a carteirada”. Nada mais cínico, o deboche indisfarçável de quem sabe que está usando o poder que tem para intimidar quem lhe desafia.
Mas o que me chama atenção mesmo é que, na história da política brasileira, os pobres sempre conviveram com o abuso de poder e/ou de autoridade de todas as esferas sem que nenhum desses casos mobilizasse um debate sobre o abuso de poder exercido por agentes públicos.
Apenas neste difícil 2016, na mesma semana, o MST sofreu duas “demonstrações” de usos abusivo de poderes, do Judiciário, na Bahia, e do Executivo, no Paraná. No primeiro caso, integrantes do movimento receberam não apenas uma ordem de despejo imediato em um assentamento, como também foram proibidos de se aproximarem até 10km da área – o que os impedia, inclusive, de visitar parentes nas redondezas. Cerca de 130 famílias do Acampamento Bruna Araújo tiveram de deixar o local às pressas, acompanhados pela polícia.
Na “República” de Curitiba, o governo de Beto Richa autorizou o envio de tropas de choque para reintegração de posse em ocupação do movimento em uma fazenda improdutiva pertencente a empresários envolvidos em desvio de dinheiro público nos casos de corrupção na Petrobras. Cerca de 1.200 famílias foram obrigadas a sair às pressas, sob a pressão de cerca de 650 policiais.
E o que dizer da decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em que 25 desembargadores negaram o pedido de mandado de segurança dos moradores da ocupação Izidora? O pedido havia sido feito para garantir negociação diante da ação de despejo emitida pela Vara de Fazenda de BH, que havia sido temporariamente suspensa pelo Superior Tribunal de Justiça.
De parlamentares a policiais, de juristas a ministros, o abuso de autoridade que pune os pobres nunca foi um problema, nunca um drama ou dilema, nunca nada capaz de mobilizar um repensar das práticas de abuso de poder.
O mau uso da prisão coercitiva não será um problema desde que ela não seja usada de maneira muito semelhante às prisões provisórias efetuadas aos montes nos rincões periféricos do país, em que presos lotam penitenciárias sem qualquer esperança de julgamento, um drama que aumenta em nível de desumanidade quando o preso é reconhecidamente inocente, como é o caso de Rafael Braga Vieira.
O desaparecimento de Amarildo, em 2013, começou com abuso de autoridade. É o abuso de autoridade o primeiro crime cometido por policiais nas periferias, quando obrigam moradores a apagar fotos e vídeos em casos de conflito, para que não sirvam de provas. É o abuso de autoridade que permite que guardas municipais exturcam mercadorias de vendedores ambulantes nas cidades. É abuso de poder a ação da maioria dos juízes que, do conforto de suas bem protegidas e confortáveis salas com ar condicionado, ordenam,s com uma simples assinatura, o despejo de milhares de famílias sem qualquer indicação de como e para onde vão cada um daqueles homens, mulheres e suas crianças.
Abuso de autoridade é paisagem no cotidiano pobre e (ainda mais) periférico no Brasil inteiro – mas é razoável desde que ele não toque em quem também tem poder.
Se, por um lado, Renan quer garantir que seu poder não tenha limites e que não seja afrontado no alto do seu trono no Senado, Deltan Dellagnol e Sérgio Moro se sentem desconfortáveis com a ideia da imposição de limites ao seus poderes de mandar investigar, prender e soltar.
A guerra em torno do abuso de autoridade é uma guerra entre autoridades. Nada disso se referencia nos abusos diários que todo cidadão comum, impotente diante de qualquer “carteirada”, sofre. Esta é uma disputa de poder, demonstração de força dos poderes que se digladiam em meio ao aumento da tensão social, à medida que a “harmonia” esperada pelo governo e seus aliados com o impeachment da presidente Dilma não ocorreu.
O governo desce ladeira abaixo em popularidade, a Lava-Jato sofre cada vez mais pressão dos políticos para que perca força, aqui e ali, voltam-se a ouvir panelas sendo batidas em ruído confuso, quase envergonhadas de sua utilização anterior. Para os poucos que estão nas ruas, a repressão volta ao nível de truculência vistos em 2013 e 2014. A crise em estados como o Rio de Janeiro revolta cada vez mais categorias de trabalhadores, que engrossam a presença nas ruas, reprovando o governo Temer e suas medidas. A nova onda de ocupações das escolas inspirou novas ocupações, de outros prédios e instituições.
Parece haver mais egos feridos do que um empenho em se agir com justiça.
À revelia de tudo isso, a discussão atual sobre o abuso de poder não passa da esfera de cima para a esfera de baixo. Os casos citados em seus debates serão pura e simplesmente para se valerem de exemplos, e eles sabem que eles só existem na esfera de baixo.
Se nunca gritaram contra o abuso de autoridade e de poder vivenciados pelos pobres na realidade cotidiana, não há razão para imaginar que, agora, um “santo Renan” surja preocupado com os supostos poderes ilimitados da magistratura e muito menos que um “salvador Dellagnol/Moro” lute incansavelmente para que o juízes e procuradores tenham plena liberdade de ação.
Esqueça. Esqueça esse debate. Está tudo entre eles e deles não passará. A polêmica em curso sobre o abuso de autoridade e de poder contida no debate Renan-Maia-Procuradores-Lava-Jato-Moro tem muito mais as características de uma guerra de ego. Parece haver mais egos feridos do que um empenho em se agir com justiça. Aqui em baixo tudo igual, o abuso de autoridade corre solto e ninguém vê. Só a gente sente.
*Ronilso Pacheco é teólogo, articulador social pelo Viva Rio, ativista. Autor de "Ocupar, Resistir, Subverter: igreja e teologia em tempos de violência, racismo e opressão".