“TÁ DIFÍCIL COMPETIR”, tuitou o pessoal da série americana House of Cards, aquela em que um presidente golpista faz de tudo para se manter no poder, inclusive matar um ou outro opositor. Pois eles têm razão, a coisa empenou de vez, e não há ficção que dê conta dos nossos acontecimentos políticos recentes. Mesmo porque, algo muito caro à indústria do entretenimento se perdeu em Brasília: a verossimilhança. Um roteiro que narrasse os fatos políticos recentes dificilmente iria adiante. “Um tanto forçado, não?”, diria qualquer produtor de respeito, antes de jogar o calhamaço de duas mil páginas no lixo.
Nos últimos dias vimos, por exemplo, o (ainda) senador Aécio Neves fazer beicinho em vídeo, pagando de pobre injustiçado depois de pedir R$ 2 milhões de propina para pagar advogados. Vimos os bilionários Joesley e Wesley Batista darem a volta em uma nação e partirem felizes com sua fortuna para os EUA, levando a reboque um iate de R$ 20 milhões (curiosamente o mesmo valor que haviam pago pela aprovação de uma lei). Vimos formadores de opinião de esquerda saírem em defesa de Reinaldo Azevedo, um dos mais reacionários e virulentos comentaristas políticos do país, que teve conversas ao telefone tornadas públicas indevidamente. Vimos, por fim, uma figura de linguagem se tornar realidade: Brasília em chamas.
OU MELHOR DIZENDO, E O QUE DEIXOU DE SER TÃO ABSURDO?
Seria possível passar semanas, meses a fio, elencando os absurdos da política atual. Mas não é preciso, os jornais estão aí pra isso. Agora, e o que não é tão absurdo? Ou, melhor dizendo, e o que deixou de ser tão absurdo? Os assuntos de relevância que a imprensa deixou de cobrir para correr em zigue-zague, apagando um incêndio depois do outro? Eles têm alguma chance diante de manchetes como “Brasília em chamas, exército nas ruas”?
Uma breve folheadas nos jornais mostra que não. Notícias sérias e importantes, que seriam manchete em qualquer país minimamente civilizado (não, os EUA de Trump não entram na conta), têm sido relegadas aos pés de página de edições que esfriam antes de chegarem às bancas.
Na busca por exemplos, seria interessante partirmos do centro do poder político. O ex…, perdão, o presidente Michel Temer recentemente foi pego em conversa comprometedora que poderia muito bem motivar um pedido de impeachment. “Ah, mas o Joesley de novo?”, protestará o leitor impaciente. Não. Soa absurdo, mas Conde Temer foi flagrado em outra conversa pra lá de suspeita com Rodrigo Rocha Loures (sim, o homem da mala). Por conta disso, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, estuda pedir a abertura de inquérito, mais um, para investigar a conduta do mandatário.
Na conversa, Conde Temer passava a seu cupincha informações sobre um decreto que assinaria dali a seis dias, aumentando de 35 para 70 anos o tempo das concessões no porto de Santos. “Aquela coisa dos 70 anos lá para todo mundo parece que está acertado aquilo lá”, disse.
Rocha Lourdes recebeu a informação privilegiada, desligou, e, minutos depois bateu um fio para um empresário do setor, um claro beneficiário da medida. “É isso aí”, festejou do outro lado da linha Ricardo Conrado Mesquita, diretor da Rodrimar, “você é o pai da criança”, disse a Loures.
O caso é pra lá de sério. Mais ainda porque o presidente já tinha sido investigado pela hipótese de ter recebido R$ 640 mil de propina por negociatas no mesmo porto de Santos. Fossem em tempos normais, o busílis iria direto para as manchetes e haveria um enxame de repórteres debruçados sobre ele, escarafunchando documentos, pressionando autoridades por mais informações. Nos dias de hoje? Não ganhou nem chamada na capa dos três principais jornais do país.
Com a ausência de antagonistas, as coisas fluíram como nunca. Foram sete medidas provisórias aprovadas num piscar de olhos
O principal problema diante dessa constatação é que políticos são como crianças pequenas: quando se reúnem sem supervisão de um responsável acabam esfregando o conteúdo das fraldas nas paredes. Ontem, por exemplo, quando a capital federal passou a arder em chamas, o presidente achou por bem colocar o exército na rua. O clima de 1964 arrepiou a nuca de políticos da oposição e, como ato de protesto, eles deixaram o plenário da Câmara.
E os governistas fizeram o quê? Suspenderam os trabalhos? Passaram a discutir saídas para o escalonamento da crise? Nada disso. Resolveram simplesmente aprovar leis. Com a ausência de antagonistas, as coisas fluíram como nunca. Foram sete medidas provisórias aprovadas num piscar de olhos.
Deputados de oposição fazem protesto durante sessão extraordinária na Câmara, na quarta-feira (24)
Foto: Lúcio Bernardo / Câmara dos Deputados
Entre elas, como não podia deixar de ser, estava uma que autorizava reajustes salariais para servidores públicos. Mas havia assuntos dos mais díspares. De regras para o desconto ao consumidor à carência para concessão de auxílio-doença, passando pela regularização fundiária na Amazônia.
Aliás, sim, Amazônia. A região já não é das mais queridas entre os editores da imprensa tradicional, mas, ao menos essa semana, ofereceu motivos de sobra para ganhar destaque no noticiário. Na terça (23), o Senado aprovou uma medida provisória que, como se nada fosse, diminuiu a proteção ambiental de vastas áreas, colocando em risco 320 mil hectares de floresta, ou o equivalente a duas vezes a capital paulista. Pouco se falou no assunto, mas, vá lá, o texto depende de sanção presidencial e quem sabe o presidente Temer, que indicou o ruralista Osmar Serraglio para cuidar de questões indígenas, não tenha um súbito ataque de sensatez e barre o disparate.
Há uma pequena guerra civil instalada em um Estado brasileiro, mas, diante de toda uma nação à deriva, pouco se fala no assunto
Mas essa foi só uma das notícias amazônicas. Ontem a região voltou a oferecer um farto e trágico material jornalístico. Dez pessoas foram mortas na cidade de Pau d’Arco, no Pará, após uma ação conjunta das polícias civil e militar, numa suposta briga fundiária que ecoou o massacre de Eldorado dos Carajás.
Autoridades e imprensa local afirmaram que policiais estavam à cata de suspeitos de terem matado o segurança de uma fazenda, palco de disputa por terra. Na versão oficial eles teriam sido recebidos à bala e reagido em legítima defesa. Já a Comissão Pastoral da Terra disse que houve uma ação de despejo mal-sucedida e ilegal – uma vez que, desde o massacre de Eldorado dos Carajás, operações do tipo devem ser efetuadas por equipes policiais especializadas.
O secretário de Estado de Segurança Pública e Defesa Social, coronel Jeannot Jansen, o comandante da Policia Militar, coronel Hilton Benigno, o diretor de Polícia do Interior, delegado João Bosco Rodrigues, e o secretário de Estado de Justiça e Direitos Humanos, Michel Durans, concederam entrevista coletiva, na tarde desta quarta-feira, para explicar os procedimentos que o Sistema de Segurança Publica está tomando em relação ao caso.
Foto: Márcio Ferreira / Ag. Pará
A chacina era uma tragédia anunciada. Entre 2007 e 2016, foram 103 assassinatos similares, o que, ainda segundo a Pastoral da Terra, coloca o Pará como o Estado com mais mortes no campo. A situação, além de tudo, vinha recrudescendo. De acordo com a entidade, ao menos 26 pessoas morreram em 2017 por questões agrárias.
Ou seja, há uma pequena guerra civil instalada em um Estado brasileiro, mas, diante de toda uma nação à deriva, pouco se fala no assunto. A normatização da insanidade coletiva torna ordinárias as insanidades locais.
A boa notícia nisso tudo é que o caos tende a ser passageiro. Há notícias de que José Sarney já traça planos para que o PMDB siga no poder, Maluf ainda não foi preso e o PT articula saídas negociadas pelos bastidores enquanto, em público, veste-se de revolucionário. Sinais claros de que ainda resta alguma normalidade na nação.
(*) Tomás Chiaverini é formado em Jornalismo, é autor dos livros-reportagem "Cama de Cimento" e "Festa Infinita" (ambos publicados pela Ediouro), além do romance "Avesso" (Global). Como repórter, colaborou para Folha de S.Paulo, revista Piauí, Agência Pública, entre outros. Foi editor-chefe do programa Roda Viva, da TV Cultura, entre 2012 e 2015.
Texto publicado originalmente no The Intercept Brasil